quarta-feira, 21 de maio de 2008

Mais do mesmo

Por: Mob Cranb

No sábado passado, bebendo com alguns amigos, um falou: "Pô, essa hora o José Saramago deve estar vendo a versão de 'Ensaio sobre a Cegueira' com o Meireles." E eu retruquei: "Bah! Dane-se o que Saramago achar do filme. O importante é você, eu, ele gostar." E a conversa acabou por ali.

Sei que fui grosso e, vendo esse vídeo agora, me senti mais culpado ainda.

Mas depois, vendo esse artigo do Meireles, que foi publicado pela Ilustrada, vi que não preciso me sentir tão "culpado" assim e, não importa o que os outros acham ou deixam de achar, devemos continuar fazendo nosso trabalho. “É isso que faço sempre”, diz Saramago no artigo.

Por Fernando Meirelles

Depois de uma semana que pareceu uma verdadeira montanha russa emocional, saí de Cannes no sábado e fui para Lisboa mostrar o filme “Ensaio sobre a Cegueira” para o autor da história, José Saramago.

Por meses, antecipei o quanto a sessão me deixaria ansioso _e não estava errado.
Infelizmente, o cine São Jorge, que nos foi reservado, não tinha projeção digital, então foi improvisado um sistema para passarmos nossa fita. Pensei em desistir de mostrar o filme ao ver um teste da projeção, mas o escritor já estava na sala de espera e, em respeito ao compromisso, achei melhor ir em frente.

Sentei-me ao seu lado, expliquei aos poucos amigos presentes que só havia legendas em francês e começamos a ver o filme. Sofri cada vez que uma imagem não aparecia ou que uma música mal soava. Ele assistiu ao filme todo mudo e sem reação nenhuma.

Ao final da sessão, quando os créditos começaram a subir, sua mulher, Pilar, debruçou-se sobre Saramago e me agradeceu, emocionada. Silêncio ao meu lado. Antes de terminar os créditos principais, as luzes do cinema foram acesas, eu ousei olhar para o lado e vi que ele fitava a tela sem reação, como se estivesse interessado no nome dos assistentes de cenografia que passavam.
Deu tudo errado, pensei. Toquei seu braço levemente e lhe falei que ele não precisava comentar nada naquele momento, mas, então, com uma voz embargada, ele me disse, pausadamente: “Fernando, eu me sinto tão feliz hoje, ao terminar de ver este filme, como quando acabei de escrever ‘O Ensaio sobre a Cegueira’”.

Apenas agradeci e ficamos ali quietos. Dois marmanjos segurando as próprias lágrimas em silêncio. Ele passou a mão nos olhos, disfarçando a sua.Pensei no meu pai. Emoção sólida, dessas que se pode cortar em fatias com uma faca. Num impulso, beijei sua testa. Na conversa e no jantar que se seguiram, ele disse que não considera o filme um espelho de seu trabalho e que nem poderia ser assim, pois cada pessoa tem uma sensibilidade diferente.

Disse ter gostado da experiência de ver algo que conhecia, mas que, ao mesmo tempo, não conhecia. Falou que o filme não era perfeito, mas que nunca havia assistido a um filme perfeito. Comentou algumas imagens que o emocionaram especialmente e disse ter achado o nosso Cão das Lágrimas muito doce; preferia que fosse mais agressivo.

Quando lhe contei sobre as críticas favoráveis e contrárias ao filme em Cannes, incluindo a da Folha, ele imediatamente lembrou e recontou aquela historinha do velho que vem puxando um burro montado por uma criança.

Um passante vê aquilo e acha absurdo a criança estar montada enquanto um velho caminha, então eles invertem a posição. Outro passante cruza com o grupo e reclama da situação: “Como um adulto deixa uma criança a pé enquanto vai confortavelmente montado?”. Então, os dois montam no burro, mas alguém acha aquilo uma crueldade com um animal tão pequeno.
Finalmente, resolvem ambos carregar o burro nas costas, até que outro passante observa como são estúpidos por carregar o animal. E, enfim, o velho decide voltar para a primeira situação e parar de dar importância ao que dizem.

“É isso que faço sempre”, concluiu o escritor.

Acabo de deixar José Saramago e sua mulher no Ministério da Cultura de Portugal, onde está sendo exibida uma retrospectiva de seu trabalho e sua vida.

Houve uma pequena coletiva de imprensa ali, depois de visitarmos juntos a exposição. Meu filminho de menos de duas horas me pareceu muito insignificante ao ser colocado ao lado daquela obra de uma vida inteira.

8 comentários:

Rodrigo Fernandes disse...

ótimo esse depoimento do Meirelles...
o cara é talentosissimo e nada pode o diminuir...
Acho até que é muito fácil fazer criticas sobre um filme pelo qual seus idealizadores trabalharam tanto para ser concretizado... cada um que trabalhou nele sabe o seu valor, se falam mal, então façam melhor, como se em menos de duas horas de projeção vc visse algum defeito que o diretor não tenha visto trabalhando incansavelmente naquele projeto durante meses... a moral é essa mesma, olhar sempre para frente e aprender com os erros quando forem apresentados de forma convicente e construtiva...
abraços!!!

Cine Ôba! disse...

Com certeza Rodrigo.No vídeo, vendo o Saramago disfarçando as lágrimas me deu um nó na garganta..hehe
Mob Cranb

Alex Gonçalves disse...

Mob, havia lido esta este relato e fiquei muito feliz por Meirelles. O maior medo que ele enfrentou foi mesmo o de apresentar o filme a Saramago. Confesso que a recepção em Cannes me deixou com receio enquanto ao filme, mas ainda o aguardo com muita ansiedade.

Abraço!

Vinícius Lemos disse...

Ótimo artigo!
mas, mob, que o vídeo é de engasgar é msm!

Vinícius Lemos disse...

Ótimo artigo!
mas, mob, que o vídeo é de engasgar é msm!

Vinícius
http://blogcinefilia.zip.net/

Wiliam Domingos disse...

A reação de um autor poderia ter sido horrível ao ver uma adaptação de sua história, Saramago reagiu de forma surpreendente! Meirelles deve ter feito o ideal mesmo...
E é isso ai, fazer lembrando que sempre será alvo de críticas, mas fazer mesmo assim!

pseudo-autor disse...

Eu não sei vc, mas é um dos filmes que eu aguardo com mais impaciência. Ainda mais depois do que eu li no blog que o Meirelles fez para discutir a produção do filme. Vem coisa boa aí! E eu, fã do cineasta que sou, desde os tempos de Domésticas, driblo a minha impaciência escrevendo nos meus blogs e produzindo o meu primeiro romance.

Quer discutir a imprensa?
acesse http://robertoqueiroz.wordpress.com

Selly disse...

Blindness,só pelo post, já está sendo um dos filmes mais esperados! Ontem tava no www.weshow.com/top10/pt vendo vídeos das top10 dele e tem muita coisa de cinema, fiquei curiosa pra saber as novidades! Venho sempre aqui pra saber! Beijos e parabéns pelo blog.